Mesmo com 12,5 meses de viagem por terra pela África e inúmeras fronteiras no meio do caminho, cruzar do Paquistão ao Afeganistão foi uma prova de fogo. Ela conseguiu superar Rosso, entre Mauritânia e Senegal, famosa pelos golpes de cambistas e barqueiros. Aqui na Ásia, o caos fica por conta da grande quantidade de imigrantes e da violência dos militares na tentativa de organizar o fluxo.
Com o visto obtido no consulado afegão na paquistanesa Peshawar —foi a primeira visita a um prédio do gênero nesses 13 meses de Ásia/Oceania, enquanto estivemos em pelo menos 11 no continente africano—, pegamos um táxi (Rs 1.100/R$ 22,60) até Karkhano Market, onde buscamos um táxi compartilhado para Torkham, na fronteira com o Afeganistão.
Nessas concentrações de veículos, é muito comum que os motoristas abordem com agressividade, pois eles literalmente vencem no grito. Havíamos lido que uma húngara tinha conseguido um assento por Rs 500 (R$ 10,50), cerca de dois anos atrás. Agora, porém, negociamos a vaga no carro por Rs 1.000 (R$ 20,50), e olha que tentaram cobrar o dobro. Um senhor já aguardava no banco da frente e logo partimos, às 9h10.
O motorista correu o quanto pôde, pois 20 minutos depois paramos no primeiro checkpoint, onde apresentamos os passaportes brasileiros e tiramos foto com alguns dos militares. Na sequência, eles entraram num carro e seguiram na nossa frente, como escolta.
Alguns quilômetros depois, fizemos outra parada, com checagem de documento e foto, e agora um oficial armado viajou ao nosso lado. Esse procedimento se repetiu algumas vezes e, ao todo, foram três sujeitos diferentes.
Vi, no celular de um dos oficiais, que há um grupo de WhatsApp, onde as imagens dos estrangeiros são compartilhadas, no intuito de manter o controle da região. Lemos relatos antigos de escoltas, mas os militares paquistaneses devem estar mais atentos agora, em meio à escalada de tensões com a Índia.
Fronteira Paquistão-Afeganistão
Chegamos à fronteira às 10h45 e o oficial que viajou com a gente nos guiou até o prédio —ele, inclusive, indicou onde trocar dinheiro e reclamou com o cambista da qualidade de algumas notas de afeganis, a moeda vizinha. Assim como nos checkpoints, um militar nos deixava sob a guarda de outro, e em nenhum momento ficamos desacompanhados.
Um desses agentes nos levou para dentro de um prédio e nos conduziu aos funcionários da imigração. A questão é que estávamos atrás deles, enquanto víamos os computadores e as janelinhas, onde se amontoavam afegãos e paquistaneses. Era possível contar quatro ou cinco pessoas, com seus passaportes em mãos, se espremendo para garantir sua vez. Isso sem falar no empurra-empurra atrás. Os funcionários pararam com o processo dos locais e deram prioridade a nós.
Com carimbo de saída, outro militar nos levou por um caminho, mas estava tão conturbado que ele deu a volta e fez um percurso maior, entre túneis, até o último setor. No trajeto, alguns agentes deram socos e chibatadas nas pessoas.
Do outro lado do túnel, mais muvuca, tanto para entrar, quanto para sair do Paquistão. Lá, um funcionário, que disse ser do Ministério do Turismo, anotou nossos dados e o nome dos hotéis em que ficamos. Ele queria ter certeza de que tivemos uma boa passagem pelo país. Depois, um oficial pegou novamente nossos dados e, quando finalizou, estávamos prontos para cruzar a fronteira.
Num estreito corredor, com dezenas de pessoas, nos esgueiramos até chegar aos oficiais afegãos. Quando nos viram, nos mandaram passar na frente dos demais, mostrando que desse lado o estrangeiro também tem prioridade. Foram algumas checagens de passaporte até entrarmos no prédio em que seríamos entrevistados pelo Talibã.
Coincidiu que cruzamos a fronteira com um casal argentino, o @vecinosporelmundo, e o espanhol Juan. Dentro do prédio, dois homens passaram a nos entrevistar numa ampla sala, mas depois nos levaram para uma menor, com ventilador, onde ficamos sentados enquanto eles faziam perguntas e anotavam os dados.
Basicamente, queriam saber quantos dias ficaríamos, em que hotel nos hospedaríamos e se conhecíamos alguém no Afeganistão. O espanhol citou um médico e, ao mostrar os contatos do homem, foi questionado do porquê o telefone desse sujeito ser paquistanês. Os agentes também checaram nossos telefones, e percebemos que eles olhavam as últimas conversas no WhatsApp. Tiraram algumas fotos e pronto, devolveram os aparelhos. Aparentemente, não olharam as demais redes sociais.
Enquanto nos serviam chá, falaram que, como iríamos para Cabul, teríamos que parar em Jalalabad, no caminho, para nos cadastrar no Ministério da Informação e Cultura. Viajar pelo Afeganistão implica nessa burocracia, de se registrar no governo nas capitais dos distritos. Até onde sabíamos, ao entrar no país, poderíamos fazer isso somente na capital. Mas se o Talibã está falando, quem somos nós para discordar, né?
Enquanto finalizava o atendimento, um dos oficiais nos apontou dois homens, que seriam nossos motoristas até Cabul —um para nós e outro para os argentinos e o espanhol.
Havíamos lido que é possível arranjar um táxi compartilhado fora do prédio, por 700 Af (R$ 58) por pessoa, ou 2.800 Af (R$ 231) o carro. Ali, o agente foi incisivo ao falar que teríamos que pagar 4.200 Af (R$ 346,50) ou US$ 60 (R$ 351) pela corrida. Mais uma vez, se o Talibã está falando, quem somos nós para negociar o preço, né? Comentamos que tínhamos dólares e disseram que, como eram notas de US$ 50 e de US$ 10, não precisaríamos trocar por afeganis.
Liberados, fomos a outro prédio, onde preenchemos um formulários e lá deixamos duas fotos 3×4. O funcionário, bastante simpático, preencheu um caderno com nossos dados e nos deu uma pequena ficha, escrita à mão, com uma das fotos. Era o documento que precisaríamos mostrar dali em diante, assim como o passaporte, para quem nos parasse.
Foram vários minutos nesse processo, e muitas crianças tentam vender bugigangas, enquanto furtam objetos das mochilas. Cientes disso, colocamos as capas de chuva nas mochilas grandes, nas costas, e trancamos com cadeado as pequenas, na nossa frente. Sem falar que monitorávamos um ao outro.
Com carimbos nos passaportes, seguimos pelo caminho até a saída do prédio e, numa parada, tomamos a vacina da poliomielite, obrigatória. Lemos relatos de europeus que cuspiram fora o líquido. Fãs do SUS e crescidos visitando o Zé Gotinha, ficamos felizes de termos adquirido mais uma proteção.
O consultório do viajante do Hospital das Clínicas, aonde fomos antes de iniciar nossa viagem de volta ao mundo, já havia nos recomendado essa vacina, mas o Paquistão e o Afeganistão, áreas endêmicas da doença, estariam no nosso roteiro dali dois anos, e a imunização venceria nesse intervalo. Infelizmente, não conseguimos retornar aos especialistas antes da temporada pela Ásia.

Agora, sim, estávamos liberados da burocracia da fronteira, após quase duas horas ao todo. O motorista não falava nada de inglês, e a viagem foi na base da mímica. Passamos por Jalalabad, mas ele não parou para fazermos o tal registro. Chegamos à capital em cinco horas, às 17h30, depois de percorrermos cerca de 230 km.
Na estrada, apresentamos os documentos em dois checkpoints e, na entrada de Cabul, em outros três. Na chegada ao hotel, o motorista ainda quis mais dinheiro, além dos US$ 60. Isso porque o Talibã usou a cotação oficial, enquanto os muitos cambistas da capital fazem contas a partir do valor da nota de dólar e de sua qualidade.
Partimos do pressuposto de que, se o governo tabelou esse preço, não vamos debater. Deixamos o taxista falando sozinho e nos refugiamos no hotel, como acabaríamos fazendo nos próximos dias.
















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