A viagem para o Afeganistão só não nos gerou tanta tensão porque nossos olhos estavam voltados ao desenrolar do conflito entre Índia e Paquistão. Assim, nem deu tempo de pensar muito sobre o que nos esperava no território controlado pelo Talibã.
O país não costuma estar na rota dos viajantes, menos ainda na de brasileiros. Por isso, buscávamos notícias havia alguns meses de quem estivera por lá, principalmente de mulheres, já que elas enfrentam mais desafios nessas bandas do que os homens. E foi justamente essa diferença de tratamento que minou nossa experiência. A Pati deu o depoimento dela em nossa newsletter semanal.
Informações práticas*:
- Média hospedagem: 2.783 Af (R$ 236,50)
- Média almoço: 530 Af (R$ 39)
- Média jantar: 410 Af (R$ 34)
- Visto: brasileiros precisam de visto
- Moeda: afegani (R$ 1 = 12,89 Af)
- Dica: Leis e condutas podem mudar de uma hora para outra, então é importante saber que o nosso contexto não necessariamente se repetirá com você. Assim, é interessante contatar quem visitou o país numa época próxima à sua viagem.
* valores para maio de 2025 para duas pessoas
Após cruzarmos a conturbada fronteira de Tokham, com o Paquistão, e sermos entrevistados por oficiais do Talibã, pegamos um táxi direto para a capital, Cabul. Os agentes nos instruíram a pararmos em Jalalabad e nos registramos no prédio local do Ministério da Informação e Cultura, uma burocracia necessária quando se visita uma província, mas o motorista passou direto e nos deixou em nosso hotel.
Ficamos no Clock Tower Hotel, um ótimo refúgio na capital. Localizado nos três últimos andares de um alto prédio, tínhamos um quarto grande com um banheiro espaçoso (2.783 Af/R$ 236,50), com uma ótima vista do nascer do sol. Ahmad, o simpático gerente, fez questão de nos deixar à vontade e ofereceu seus funcionários para nos ajudar em qualquer atividade, da compra de chip à troca de dinheiro.








Atravessamos a fronteira com um casal de argentinos, o @vecinosdelmundo, e o espanhol Juan e, coincidentemente, ficamos no mesmo local. Assim, na manhã seguinte fomos todos, junto com um dos funcionários do hotel, nos registrarmos no Ministério da Informação e Cultura da capital.
No complexo militar, passamos por algumas revistas e fomos entrevistados por agentes do Talibã, que perguntaram sobre quais províncias visitaríamos e quantos dias ficaríamos. Ganhamos um documento que liberava nosso trânsito pelas áreas solicitadas e ainda conversamos rapidamente com uma autoridade. Além de dizer que o país quer receber bem os turistas, nos pediu para divulgarmos a nação a nossos conterrâneos. Isso tudo por meio de um intérprete, um dos poucos homens que se dirigiu às mulheres durante a nossa estadia.
No mesmo dia, nos juntamos ao espanhol para um passeio organizado pelo gerente do hotel: ir almoçar no Paghman Vali, a cerca de uma hora do centro de Cabul. Esse é um costume dos moradores da capital, pois lá há piscinas, para homens, e várias tendas às margens de um rio. Nosso motorista, um chef de cozinha de hotéis e que perdeu o emprego com a ascensão do Talibã, escolheu um lugar e, após uma hora, estávamos diante de um enorme e suculento churrasco de cordeiro, acompanhado de vários pães e salada. Deu trabalho dar conta dele.
Na ida, o motorista sugeriu pararmos em um complexo de prédios coloniais, mas estava fechado. Na volta, a ideia era visitarmos um antigo palácio, mas, quando souberam que havia uma mulher no grupo, vetaram a sua presença. Obviamente, não dividimos a equipe e regressamos ao hotel chateados com a primeira proibição à Pati.







Eu também tive uma experiência negativa quando, na noite da nossa chegada, saí para comprar comida e, na volta, fui parado por dois homens em uma moto —esse combo que gera tanta apreensão no Brasil causou o mesmo sentimento no Afeganistão. Falando poucas palavras em inglês, o piloto pediu algo e eu, que não entendi o que era, entreguei o passaporte. Seguiram-se algumas perguntas truncadas e respostas evasivas e, após momentos de tensão e muita cara de paisagem —ou de bobo mesmo—, me liberaram.
Assim, contratamos, por meio de Ahmad, um guia para um passeio de um dia por Cabul, a US$ 50 (R$ 292,50). Queríamos perambular pela cidade com a companhia de um nativo, que poderia intermediar possíveis embaraços. O Fred e a Lary, do @vousemvolta, viajaram para o Afeganistão com um profissional e tiveram bons momentos, e está tudo registrado lá no YouTube deles.
A capital, e muito provavelmente o interior também, sofre com constantes quedas de energia e de internet. Ficamos mais de 12 horas incomunicáveis, e isso atrasou nosso trabalho e a pesquisa sobre o que queríamos visitar com o guia. Assim, acabamos cancelando o passeio e fomos sozinhos para a rua.
O objetivo era visitar três mesquitas no centro, numa região pujante. A primeira, Haji Abdul Rahman, fica junto a um parque, atrás de um muro. Ao tentarmos entrar no complexo, um guarda, com a ajuda de um frequentador que passava por ali, perguntou sobre nosso registro e informou que mulheres não podiam acessar a área. A alternativa para a Pati seria ficar no portão, à minha espera, em meio a muitos homens que circulavam pela calçada, enquanto outros vendiam de um tudo. Nada convidativo.
E olha que nem queríamos entrar no prédio em si, e sim ver a fachada sem um muro na frente. Tivemos a chance de fazer uma visita guiada à mesquita Istiqlal, em Jacarta, na Indonésia, a maior do Sudeste Asiático, e também acessamos o interior da mesquita Sultão Omar Ali Saifuddien, em Bandar Seri Begawan, no Brunei. Sem falar que, dias antes, estivéramos na mesquita Badshahi, em Lahore, no vizinho Paquistão.
Se na primeira mesquita já fomos barrados, nem quisemos tentar visitar as outras duas. Pegamos o rumo do hotel e passamos o dia trabalhando no café Bakery Slice. O lugar é barato e conta com um bom ar-condicionado. O Wi-Fi também nos ganhou, mas volta e meia ele era desligado e tínhamos que pedir para religarem.
Como vários empreendimentos islâmicos, mulheres e famílias costumam ficar separados do restante dos frequentadores, homens. Tivemos nossa primeira experiência com essa divisão na Argélia e vimos a dinâmica se repetir em outros países muçulmanos. O problema no café afegão era mais o cheiro de cigarro, permitido em lugares fechados. Que saudades do Brasil e da proibição a esse ato.








Em nossa passagem por Cabul, três cenas eram constantes: as pessoas vendem de um tudo na rua, de comida a roupa, já que a reclamação da economia é comum; homens armados com metralhadoras estão por todo canto, de shopping a mercados, inclusive na fila do self-service do restaurante; mulheres, em menor quantidade do que homens, circulam pela cidade, nem sempre com a fechada burca.
Percebemos vários olhares curiosos delas para a Pati, que usou todos os dias uma túnica longa, companheira desde a Índia, e um lenço na cabeça. Já o meu uniforme foi calça e camiseta de manga cumprida, com o objetivo de esconder as tatuagens.
Nossos três companheiros hispanohablantes passearam por conta e disseram que a tumba Sakhi, um belo prédio mais afastado do centro, permitia a entrada de mulheres, numa ala diferente da de homens. Cogitamos seriamente em visitar o lugar, mas o forte calor de maio nos fez desistir da ideia.




Eles dedicaram ao país mais tempo do que nós e organizaram uma viagem de carro, com o mesmo motorista que nos levou ao Paghman Vali, de três dias por Bamiyan e Band-e-Amir, a US$ 50 (R$ 292,50) ao dia, mais alimentação e hospedagem deles e do afegão. Depois, foram de avião para Mazar-i Sharif. Pelas fotos, foi uma experiência agradável.
Após cinco dias em Cabul, viajamos num ônibus noturno para Kunduz, de onde pegamos um táxi para a fronteira com o Tajiquistão, outro país muçulmano, mas com bem mais liberdade às mulheres.
Queríamos acreditar nas palavras daquela autoridade afegã, que diz querer receber bem o turista, mas percebemos que há ainda um longo caminho até que os estrangeiros, principalmente as mulheres, se sintam à vontade no Afeganistão.















Deixe um comentário