Cruzar a África por terra parece aqueles jogos de videogame que, à medida que você avança, as fases ficam mais difíceis. Percebemos isso a cada fronteira. Entre Saara Ocidental e Mauritânia, percorremos quilômetros de zona de ninguém, com direito a placa de “cuidado, mina terrestre”. Na divisa seguinte, com o Senegal, conhecemos uma filial do inferno pela quantidade de cambistas e barqueiros nos abordando. Mas, agora, vimos que tensão mesmo foi passar da Guiné-Bissau para Guiné.
Para cruzar fronteiras no oeste africano, temos nos guiado pelo relato do britânico James Smith, do blog Only by Land, que costuma detalhar preços e rotas de viagem, com cidades onde trocar de veículo. Até então, todas as informações dele condiziam com o que vivenciávamos. Mas, nesta divisa, não.
De acordo com o britânico, deveríamos pegar um veículo entre Bissau e Gandembel. Na estação de vans, as pessoas se mostraram um pouco confusas sobre o destino e, após idas e vindas, o terceiro motorista com quem falamos nos garantiu que iria pra lá.
Dito isso, entramos numa grande van, com quatro grandes bancos que ligavam uma janela a outra e, no fundo, dois bancos paralelos à parede. Pagamos 4.500 XOF (R$ 39,50) pelo assento e 1.000 XOF (R$ 9) pela bagagem. Enquanto nos acomodávamos, nos falaram para usarmos máscaras. Covid? Não, poeira mesmo.

Saímos às 8h10 e percorremos 216 km em 6 horas. Poderia ser menos tempo, mas a estrada ruim e paradas para abastecer e almoço (40 minutos) não ajudaram. Como teve muito entra e sai de passageiros, chegamos a ter 28 pessoas ao mesmo tempo dentro da van.
Na cidade anterior ao nosso destino, Quebo, vários jovens abordaram nosso veículo gritando “Guiné-Conacri”. Ensaiamos uma negociação, mas um dos funcionários da van nos falou que ainda faltava muito para chegar a Gandembel e nos instruiu a permanecermos na van. Isso em algum idioma que não o português, uma das línguas oficiais do país.
Segundo o relato do britânico, chegaríamos a Gandembel e uma horda de motociclistas nos abordariam para fazermos a travessia de fronteira, mais ou menos como aconteceu em Quebo. Entretanto, ao descermos no nosso destino, nos encontramos em uma grande estrada de terra, com umas poucas casas em volta. Nesse instante, estávamos como o meme do John Travolta em “Pulp Fiction”, olhando embasbacados para os lados.

Ao longe, havia um caminhão parado, e rumamos para lá. Era uma oficina, com uma dezena de homens, entre mecânicos e observadores. Apenas um deles falou português com a gente, e descobrimos, assim, que o ponto de partida das motos para Guiné era Quebo –sim, onde os jovens nos abordaram. Entre nós e a cidade anterior, 27 km.
O homem que falava português, descobrimos depois, era um facilitador, uma espécie de agente social. Ele foi nosso intérprete com o dono da mecânica, que ligou para Quebo atrás de motociclistas para nós.
Afinal de contas, por que moto? Não viajamos sempre de carro ou van? Pois é, gente, para cruzar a fronteira por ali e percorrer uma grande distância é necessário viajar em duas rodas, boa parte em um fio de estrada (se é que podemos chamar assim) em meio à floresta. Aí está a dificuldade dessa fase/divisa, principalmente para Pati, que nunca tinha andado de moto mais do que 10 minutos.
O britânico pagou, em 2020, 13.000 XOF (R$ 114, em cotação atual). Como até então todos os valores do blog dele ainda estavam em vigor, nos surpreendemos quando o dono da mecânica nos falou que queriam 30.000 XOF (R$ 263). De acordo com o facilitador, houve um aumento no valor do combustível. Aí entrou em ação o lado negociador da Pati.
Após idas e vindas, acertamos pagar 20.000 XOF (R$ 176) em cada moto, já que estávamos com grande mochilas, e não teria como irmos em três (nós dois e o piloto) e a bagagem num único veículo. Ah, a doce inocência do viajante ocidental.
Enquanto esperávamos as duas motos chegarem, surgiu um motoqueiro do meio da floresta. Ele falaou com o pessoal da mecânica e o nosso “facilitador” disse que ele poderia nos levar. Mas o que aconteceu com as duas motos? “Um deles caiu no caminho.” E iríamos nós dois, o motorista E as mochilas? “Sim.”
Ibrahim queria cobrar os mesmos 40.000 XOF que pagaríamos nas duas motos. Negamos, pois era uma moto só, então chegamos a 35.000 XOF (R$ 307), isso segundo o nosso facilitador –por ser natural de Boké, nosso destino na Guiné, ele falava francês, mas na negociação usamos nosso tradutor mesmo.
Tudo pronto: mochilas acomodadas, pneu traseiro enchido (já que teríamos bastante peso extra) e lá fomos nós –a Pati com o único capacete disponível– para o que deveriam ser cerca de 3 horas de estrada. Já falamos da doce inocência do viajante ocidental?
Postos de fronteira e propinas
Logo no início da nossa aventura na floresta já tivemos a nossa primeira parada, para carimbar o passaporte. Era uma oca, com dois policiais dentro. Olharam os passaportes brasileiros, um terceiro que chegou falou sobre futebol e carimbaram a saída da Guiné-Bissau. Mas para liberar era preciso pagar 2.000 XOF (R$ 17,50) pelo carimbo. Como questionamos por não termos pagado na entrada, nos liberaram. Primeiro pedido de suborno (ainda que camuflado), check!
Mais um pouquinho de estrada, a segunda parada. Nesta, deveriam revistar nossas mochilas, mas tomaria muito do nosso tempo, então pediram um agrado. O primeiro agente chegou falando em francês, e a Pati respondeu que as mochilas estavam à disposição e que tínhamos tempo (risos). O segundo saiu da oca chamando, em português: “Branco! Branco!”, como costumam se referir a nós por aqui. Disse que era para pagar, repetimos o que já havíamos dito em francês, e ele respondeu que, se não tivéssemos nada, poderíamos ir. Segundo pedido de suborno (esse bem claro).
Assim encerramos a burocracia da Guiné-Bissau, prontos para passar pelos postos de controle da Guiné. O primeiro não demorou muito a vir. Olhou nossos passaportes, o eVisa e os certificados de febre amarela. Devolveu os documentos e soltou, em francês: “Nada para as crianças?” Sorrimos, acenamos e subimos na moto. Terceiro pedido de suborno.
Antes de seguirmos para as demais paradas de verificação, houve ainda uma outra aventura –como se andar em três numa moto, com duas mochilas, não fosse aventura suficiente. Era preciso atravessar o rio em uma piroga. Sim, a moto vai na piroga. Junto com a gente. Quase afundando. Mas foi uma boa pausa silenciosa do barulho do motor da moto. Tínhamos visto no Only by Land que a travessia custaria 3.000 francos guineanos, mas isso seria acertado com o piloto depois.

De volta à moto, mais uma parada para verem os passaportes. Apenas no terceiro agente que recebemos o carimbo de entrada, de um senhor muito simpático, que também preencheu nossos dados em um caderno. Houve ainda uma última verificação, quase em Boké.
Problemas mecânicos
Então, a viagem levou 3 horas? Claro que não. Lembra que Ibrahim encheu o pneu traseiro lá na mecânica? Isso porque ele estava furado, e a cada parada nos postos de controle ele aproveitava para encher mais um pouco.
Fizemos uma parada para trocar a câmara, mas não tinha para vender, e em 15 minutos fomos embora. Um pouco mais para frente, paramos em outro vilarejo, e o conserto levou mais cerca de 45 minutos. Enquanto isso, já víamos o dia chegar ao fim, pensando: “é, a gente vai andar nessa estrada à noite”.
Pelo menos, o trecho da estrada que percorremos após escurecer não era de floresta, e havia carros circulando por lá. Descobrimos ainda que perto de Boké passa um trem à noite –nossa sorte é que ele faz bastante barulho e que as cancelas da estrada funcionam, porque ele estava totalmente sem iluminação–, o que foi mais uma parada antes de chegar. No fim, a viagem ficou em 5 horas.
Ao pararmos para fazer os acertos com Ibrahim, ele disse que era 40.000 XOF. Insistimos nos 35.000 XOF dizendo que foi o que nos haviam dito lá em Gandembel. Como ele já havia pegado adiantado 6.000 XOF (R$ 53) para pagar algumas coisas pelo caminho, demos 29.000 XOF (R$ 257).
Já a travessia ele disse que foi 20.000 francos guineanos (R$ 13), ou seja, 10.000 francos guineanos por pessoa. Questionamos, mas já estávamos exaustos e queríamos tomar banho, comer e dormir. Pagamos e fomos para o nosso hotel, encerrando assim a travessia mais aventureira em fronteiras africanas.
A parada em Boké foi estratégica, já que nosso objetivo final era Conacri. No dia seguinte, pegamos um carro compartilhado em direção à capital, o que foi nossa estreia em um novo modal: o six-places. Nada mais é que um veículo velho com duas pessoas espremidas no banco do passageiro, ao lado do motorista e praticamente em cima do câmbio, e quatro pessoas apertadas atrás. Até a entrada da cidade levamos 5 horas, e outras 2,5 horas até a garagem, após uma série de engarrafamentos.
















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